segunda-feira, 6 de julho de 2020

Literatura, uma arte para pensar aspectos da realidade.



Literatura: uma arte para pensar aspectos da realidade.
(por Paulo Vinícius N. Coelho; Professor de Filosofia e Sociologia).

Uma obra literária, como um romance, revela o mundo interno de representações de seu (sua) autor (autora), um universo interior repleto de simbologias e perspectivas sobre a realidade que o circunda, mas, também seus sentimentos, emoções, valores e preferências (em vários âmbitos). No entanto, isso não necessariamente aparecerá de forma explícita, pelo contrário, muitas vezes pelos críticos é considerado um critério para avaliação da qualidade de uma obra literária a capacidade do escritor disfarçar suas próprias preferências e visão de mundo, na riqueza de “nuances” dos comportamentos e pensamentos das personagens e desenvolvimento de características psicológicas das mesmas.
Obviamente é inevitável reconhecer que mesmo no disfarce das máscaras (personagens) ali ainda está o autor (ou autora), afirmando um valor ou perspectiva importante para ele (ela) sobre a realidade (ou sobre si mesmo) ou expressando um diálogo entre perspectivas que pretende destrinchar, destruindo algumas, até destacar a que for sua preferida. Isso é inevitável, pois, trata-se da criação da mente de um sujeito que gera um universo através da escrita, com detalhes de ambiente e características de personagens, como um “deus parindo um mundo”; tal mundo é parte dele, ali ele está presente em todos os aspectos desse mundo, não há como escapar disso, mesmo na hipótese de uma escrita automática, aliás, neste caso, geralmente, a pretensão é revelar o subconsciente do próprio autor (a).

Como estamos integrados a um mundo (falando aqui do Universo-Natureza que tomamos como “realidade”, a “phýsis” dos “Filósofos da Natureza”; uma realidade dada, mas, sobre a qual pouco temos controle e conhecimento aprofundado) é comum levarmos em consideração, ao lermos uma obra literária, o contexto social, político, histórico e cultural onde o autor da obra estava mergulhado quando a produziu, e mesmo que, de nossa parte, como leitores, não demonstrássemos preocupação com isso (embora, ela esteja sempre implícita até quando não sublinhada, dado que tais informações são necessárias para que nossa mente decodifique o que está lendo), não há dúvidas de que o escritor(a) sofreu as influências do meio onde estava inserido e processou tais influências de acordo com seu arcabouço conceitual, bagagem de informação e subjetividade (para resumir).
É verdade que nossa própria mente é um mistério para nós mesmos, não é atoa que Heráclito se preocupava com o “Conhece-te a ti mesmo!” (depois repetido por Sócrates nas linhas dos diálogos de Platão), portanto o ato de escrever pode ser, também, um processo de explicitação ou expressão gradual de algo sobre o próprio íntimo do sujeito, mas sobre o qual ele não tem total controle, isso acontece com quase todas as obras de arte (independente da linguagem estética em questão), isso quando tomamos como objeto da atenção filosófica o ato criativo.
A literatura parece ser uma arte com alto grau de complexidade no que diz respeito ao acúmulo de material volitivo, e não consciente, que podemos notar em uma observação sobre as obras, e isso serve mesmo para o próprio criador que olhará para sua obra depois de concluída, encontrando coisas que não imaginava que poderiam ali estarem expressas quando estava no “durante” de seu processo criativo, mesmo que tenha muito planejado. Mas, dentro da literatura, a poesia parece ser mais potente neste sentido, podendo enriquecer a prosa, dado que a poesia pode estar presente internamente na prosa. Aqui devemos definir o que é poesia afinal: de forma muito sintética, entendo por poesia não exatamente uma linguagem poética engessada na forma do poema, mas, a capacidade de expressar, metaforicamente, com ritmo, sentimentos, ideias, vontades individuais, crenças, de forma que tais ganhem “corpos” estéticos apropriados para a apreciação sensível de quem der atenção a tal expressão, atenção de cunho estético que envolve uma reação emocional, e não apenas racional, no sujeito da atenção. Temos então que identificar o que exatamente seria essa “atenção estética”, o que exatamente acontece no sujeito que é expectador de uma obra de arte, mesmo que seja o próprio criador dela? O que acontece em sua mente e em seu corpo (ou como alguns preferem “em seu corpo psicofísico”) quando se depara com uma obra de arte estando aberto a receber dela uma “mensagem”? É preciso deixar claro que é necessário que o sujeito esteja aberto a receber da obra (ou do fenômeno “obra de arte” “x”) algo, especificamente “a mensagem estética”, caso contrário a experiência estética não se desenvolve adequadamente ou poderíamos dizer que “nem mesmo acontece”. Além disso é preciso que o espectador domine alguns códigos, que conheça alguns símbolos presentes na obra ou que consiga nela os identificar, caso contrário é possível que nem mesmo reconheça tal obra como “arte”; isso é mais comum no campo das artes plásticas e visuais, mas, também acontece na música.
A literatura se apresenta geralmente como “literatura”, mesmo nas formas de literatura mais “alternativas” ou “experimentais” há uma forma que envolve a apresentação da obra, uma forma que a determina como “literatura” (romance, prosa, poema…) e não como qualquer outra coisa, e isso pesa muito sobre tal tipo de arte. A música se aproxima do que disse com relação a literatura, mas, temos na música experimentações, em especial a partir da segunda metade do século XX, que a maioria das pessoas certamente não teriam muita facilidade em reconhecer como música, e nas “artes visuais e plásticas” as “inovações e experimentações” aparecem com uma frequência maior na contemporaneidade, em especial nas instalações e arte dita “abstrata” (uma palavra não muito adequada, mas, que é usada tradicionalmente para classificar trabalhos de artistas como Kandinsky ou Pollock).
A música mais comum (no sentido de mais “popular” ou mais propagada) tem como base escalas tomadas como padrão e que estão fundadas sobre notas identificadas. A literatura, por sua vez, está presa à gramática e ortografia de um idioma e dos ícones usados para simbolizar conceitos através da linguagem predominante dentro de uma sociedade e cultura específica.
A gramática de uma língua não pode ser ensinada sem um contato com a cultura do povo que a usa, pois, os ícones usados não seriam jamais compreendidos ou seriam assimilados de uma forma tal que quem se apropriasse deles, sem conhecer os significados usados nas sociedades que originalmente os usavam, correria o risco de criar uma nova língua e é exatamente isso que acontece com o alfabeto romano usado pela maioria das sociedades ocidentais, as letras (sinais gráficos) que formam palavras-ícones podem formar inúmeras palavras com sentidos diferentes em cada idioma onde são usadas e podem mudar até mesmo de som, embora, guardando uma linha histórica e fonética que pode ainda ser identificada. As palavras, por sua vez, carregam uma linha histórica filológica também passível de ser mapeada, dado que falamos de idiomas que derivam do Latim o qual ainda guardamos registros de estudos históricos sobre. Mas podemos lembrar aqui que o grego e até mesmo o árabe e outras línguas que usavam alfabetos diferentes, também influenciaram a formação de palavras nos idiomas que usam o alfabeto romano, mas o que permaneceu foi o som das palavras traduzidas para os sinais gráficos latinos e muitas vezes um pouco do sentido original das mesmas, por exemplo: a palavra “logos” que em grego era escrita com outro alfabeto e que dá origem no português a palavra “lógica” cujo um dos sentidos claramente é “razão”, mas que pode também ser compreendida como “uma disciplina filosófica dedicada a análise de argumentação e forma de argumentos” (disciplina a qual usará também, algumas vezes, sinais gráficos e ícones próprios, tal como a matemática tem seus sinais de adição, subtração, divisão, multiplicação, porcentagem, etc, e ícones básicos em forma do que chamamos “números” sendo os básicos “0123456789” os quais formam todos os demais, em infinitas combinações e possibilidades de adições).

Voltando à Literatura, lembramos que, como obra de arte, um romance é “aberto” e deve ser assim, caso contrário perde sua força como obra de arte, embora alguém possa talvez dizer que se cansou de um livro e que nada ele tem mais para comunicar-lhe, isso geralmente é exagero ou a falta de interesse do sujeito em tentar extrair mais daquela obra, o que poderia fazer se direcionasse a ela ainda mais atenção ou a colocasse sob questionamento, crítica). Temos aqui a sugestão que o “colocar sob crítica ou questionamento” pode manter uma obra de arte viva (no sentido de “aberta”) para o espectador, o que nos leva a reconhecer que a Filosofia é muito útil para a apreciação estética se for vista como “atividade de pensamento crítico e reflexão constante, no destrinchar da realidade” (realidade como tudo o que pode ser percebido pelo sujeito, no mundo fenomênico a seu redor e nele mesmo).

Para ilustrar bem o que quero dizer com “Literatura para pensar a realidade”, destaco a obra “O Conto da Aia” (“The Handmaid's Tale”) de Margaret Atwood. Nessa obra a autora desenvolve o mundo interior da personagem principal Offred, apresenta as camadas de complexidade da subjetividade da personagem, expressando aspectos de seus sentimentos, sua percepção sobre si e sobre a situação em que vivia, memórias, percepção sobre o próprio corpo, valores, o que sentia e pensava sobre o comportamento de outras personagens e o tempo… Podemos encarar tal trabalho como um exercício de compreensão sobre o comportamento humano, a “mente” tentando compreender a realidade e a si, e comparar ao que um filósofo ou um psicólogo tentam fazer ao tratarem dos mesmos temas.
Se lembrarmos, por exemplo, a Crítica da Razão Pura de Kant, não há dúvidas de que, apesar de recorrer também à tradição da história da Filosofia, Kant constrói sua teoria olhando para si mesmo, observando a si, tomando a si mesmo como objeto, caso contrário, de acordo com os pressupostos (ou talvez as conclusões para ser mais preciso) de sua própria filosofia, seria inviável falar sobre como o “sujeito do conhecimento” percebe a realidade, dado que tudo o que pode perceber do mundo externo e do próprio corpo são meros fenômenos submetidos à forma da intuição empírica, ao tempo e espaço e as categorias do entendimento. Kant não criou nenhuma personagem, mas poderia tê-lo feito para explicar sua perspectiva, seria um exercício de criatividade filosófica e poética, se assim fizesse, embora podemos pensar que o “sujeito do conhecimento” seja algo semelhante a uma personagem, “uma máscara”.
Margaret Atwood não escreveu (na obra citada aqui) sobre limites do conhecimento, sobre criticismo ou “razão pura”, não pretendeu escrever um livro de Filosofia com “O Conto da Aia”, mas ao abordar o tema da opressão e escrever sobre o que imaginava se passar na mente de uma mulher oprimida sob uma ditadura religiosa, nos faz pensar sobre a situação e condição humana e certamente muito do que escreveu o fez baseado em sua história de vida (não necessariamente do que viveu "na prática"), no que incluo aí toda sua bagagem de leitura e observações sobre o que acontecia a seu redor e como sua própria psiquê percebia a realidade, a si mesma, etc.
Uma escritora não pode escapar de sua própria subjetividade, isso é impossível, mas Margaret Atwood fez um exercício de imaginação e de “colocar-se” no lugar do outro, mesmo que esse outro fosse uma personagem a quem dava “vida” nas linhas de seu livro.

A Literatura é uma forma de conhecimento da realidade (retomando e frisando que, denominamos aqui “realidade” a tudo o que podemos ter acesso através de nossos sentidos e que podemos pensar “sobre” de alguma forma; o que está dado, porém, nem sempre ainda interpretado ou compreendido; também o que pode ser imaginado; o que ocorre a nossa volta e dentro de nossas mentes). A literatura é mais uma tentativa do sujeito compreender o mundo a sua volta e a si mesmo, usando a imaginação submetida à forma racional do texto literário ou se expressando através dessa “fôrma”, com suas regras específicas ou regras engendradas pelo próprio escritor ou escritora. E como toda arte, a literatura tem a potência de criar algo novo na realidade, gerar novas perspectivas, novas formas de interpretação sobre o mundo.

Podemos, a partir da obra de Atwood (a qual já inspirou filme e série de TV), pensar sobre coisas que acontecem a nossa volta, desde temas sobre política, machismo, até arte e religião, moralismo, conservadorismo, amor, família, além da própria subjetividade humana e interação entre subjetividades...
Exercitando uma analogia, podemos pensar: Seria possível, hoje, em um país como o Brasil, por exemplo, onde igrejas evangélicas neopentecostais disseminam-se pelas periferias das grandes cidades (e fazem acordos com governos), a efetivação de uma ditadura baseada nas interpretações sobre a bíblia por parte dos pastores que controlam tais instituições? Não podemos esquecer que em pleno 2020 pastores com interpretações sobre o “Velho Testamento” (alguns se aproveitando da própria tolice e arcaica crueldade que alguns trechos deste livro infelizmente apresentam) tão toscas quanto as da inquisição medieval, fazem coro com o atual governo federal que é presidido por um indivíduo que não tem vergonha em fazer apologia à tortura e ditadura militar e elogiar tiranos capitalistas. No mínimo podemos pensar, comparando com a obra de Atwood, sobre a força dessas igrejas na sociedade brasileira e a capacidade de influência que possuem sobre milhões de brasileiros, moldando aspectos da cultura e moralidade, interferindo mesmo na política, por intermédio de partidos e candidatos que patrocinam. Sendo assim, reconhecemos facilmente que a literatura nos traz, ao alimentar ou instigar nossa imaginação, a possibilidade de, no mínimo, ser auxiliar na construção de interpretações sociológicas, psicológicas e filosóficas sobre a realidade social, política, cultural e o comportamento humano.

A literatura também é um aspecto da realidade e como tal (como já sugerido), em sua potência criativa, afeta o mundo, afeta comportamentos, gera valores; isso não pode ser esquecido, o próprio texto bíblico mencionado há pouco, demonstra muito bem isso.
Em um romance, uma ficção, o mundo gerado pelo escritor aparece com leis da natureza, tempo, regras, espécies, de tal forma que, dependendo da precisão da criação, para muitos pode iludir a ponto de parecer real ou oferecer uma fuga aparentemente consistente (por convencer) do “mundo real”, escapar de um mundo que lhes pareça entediante ou pesado.
No mundo da ficção literária a imaginação pode voar, mas, dependendo da obra a opressão pode ser sentida a cada linha, como é o exemplo da obra de Atwood. De qualquer forma a criação literária e a leitura são formas de experienciar o mundo que mostram a complexidade do fenômeno humano.





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