sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Razão como Ferramenta da Vontade. (O Pessimismo em Schopenhauer e Horkheimer).




Razão como Ferramenta da Vontade.
(O Pessimismo em Schopenhauer e Horkheimer).

Por Paulo Vinícius Nascimento Coelho

(Professor de Filosofia e Sociologia; Bacharel em Ciências Sociais (Antropologia-Sociologia-Ciência Política) pela UFSM; Licenciado em Filosofia pela UFSM; Especialista em Pensamento Político-UFSM; Mestrando em Filosofia-UFSM. (contato: paulohidra@hotmail.com))
(UFSM, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil)



Resumo: O texto apresenta uma breve análise sobre as aproximações entre a “Teoria Crítica” de Max Horkheimer e a Filosofia de Arthur Schopenhauer, destacando os conceitos de “razão subjetiva” ou “instrumental” trabalhados por Horkheimer e a visão pessimista de Schopenhauer em relação ao mundo e história humana (visão essa inspirada em sua metafísica da Vontade).

Palavras-Chave: Razão Subjetiva; Razão Instrumental; Razão Objetiva; Vontade; Horkheimer; Schopenhauer; Pessimismo.


Resumen: El texto presenta un breve análisis sobre las aproximaciones de la "Teoría crítica" de Max Horkheimer con la Filosofía de Arthur Schopenhauer, destacando los conceptos de "razón subjetiva" o "instrumental" trabajados por Horkheimer, y la visión pesimista de Schopenhauer sobre al mundo y la historia humana (una visión inspirada en su metafísica de la Voluntad).

Palabras clave: Razón Subjetiva; Razón Instrumental; Razón Objetiva; Voluntad; Horkheimer; Schopenhauer; Pesimismo.




Introdução.

O pessimismo de Arthur Schopenhauer soa para alguns como nebuloso, uma visão negativa e trágica sobre o mundo, dado que Schopenhauer deixa bem claro que não há um sentido racional, um objetivo para a vida, e que tudo na verdade é apenas manifestação de um impulso irracional, a Vontade. Mas, Horkheimer conseguiu vislumbrar em Schopenhauer aspectos de uma Filosofia que lhe soou como mais positiva do que a sinistra arquitetura que percebia estar sendo engendrada pela exacerbação da racionalidade subjetiva ou instrumental com o naufrágio das promessas do Iluminismo e o advento de novas tecnologias no século XX que foram usadas para destruição e controle social, tanto nas sociedades capitalistas quanto nos regimes fascistas (Itália e Alemanha Nazista) e mesmo na ex URSS (o chamado “socialismo real), o que ficou escancarado durante as duas grandes guerras e após esses episódios terríveis da história humana. Schopenhauer, para Horkheimer, desenvolveu uma visão moral calcada em fundamentos metafísicos que era mais bela do que a vazia racionalidade científica instrumentalizada pelos detentores do poder no controle do mercado e dos Estados.
O texto apresentará inicialmente (de forma sintética) como Schopenhauer definia a Vontade e como compreendia a “razão” em sua obra mais importante “O Mundo Como Vontade e Representação” e depois estabelecerá uma relação entre o pensamento de Schopenhauer e de Max Horkheimer mostrando como o pensamento desses dois filósofos pode ser aproximado e usado para interpretarmos aspectos da história humana, mesmo na contemporaneidade.


Vontade e Razão em Schopenhauer.

Na natureza Schopenhauer identificava a manifestação de uma essência metafísica irracional, cerne impulsivo do mundo, presente em todas as espécies vivas e também na matéria inorgânica; a tal essência denominou Vontade.
A Vontade seria una, ou seja, ela está presente como essência única em todas as coisas, portanto, há uma ligação básica, de cunho metafísico, entre tudo que existe no mundo. Essa unidade da Vontade poderia indicar que, para um ente vivo (fenômeno da Vontade), quando consciente de sua existência, seria fácil identificar em outro fenômeno da Vontade essa mesma essência e que a harmonia entre espécies e manifestações da Vontade seria algo comum, permanente e nem mesmo se colocaria como uma questão; no entanto, não apenas não é fácil a um fenômeno ou objetivação da Vontade reconhecer a “mesma essência comum” em outro fenômeno da Vontade como, também, a harmonia entre espécies não é algo tão explícito, pelo contrário, explícito, na maioria das vezes na natureza, é o conflito entre espécies, embate entre entes vivos e, dentro de algumas espécies a disputa entre seus próprios membros, algo que se traduz como uma batalha constante pela sobrevivência.

No corpo de um animal a Vontade se expressa de forma clara, o corpo de todo animal parece estar adaptado ao conflito pela vida. Tubarões com suas fileiras de dentes afiados, capacidade de nadar em grandes velocidades e detectar odor de sangue a longas distâncias, águias que podem, de elevada altitude, enxergar a luz ultravioleta refletida na urina de roedores (presa em seus pelos), insetos que se camuflam em meio a folhagem, formigas que trabalham de forma organizada cumprindo tarefas como um grande organismo, plantas que produzem flores que atraem pássaros com seu odor, cor e formato, etc. A espécie humana apesar de seu corpo aparentemente frágil, se comparado a outras espécies, possui um sistema nervoso muito desenvolvido e uma inteligência aguçada que lhe permite criar tecnologias que vão além de seu próprio corpo e, além, dessa capacidade de cunho prático, ainda possui a racionalidade, o que abre a porta para uma dimensão diferenciada da realidade: o mundo simbólico, cultural e conceitual.

Segundo Schopenhauer só a espécie humana possui a capacidade de lidar com conceitos abstratos, algo que vai além da inteligência empírica, e a isso o filósofo denominou razão. A razão permite a espécie pensar sobre si mesmo e tecer teorias sobre o mundo, sendo o momento em que a essência do mundo (A Vontade) encontra a possibilidade de se revelar em termos conceituais, tentar compreender-se racionalmente, pois, a razão, trabalhada na Filosofia, pode ser como um espelho da Vontade, dispor em linguagem e conceitos aquilo que antes apenas por intuição e emoção podia ser percebido.

Poder-se-ia até dizer que cada um, sem ajuda de ninguém, sabe o quê é o mundo. De fato, cada um é o próprio sujeito do conhecimento, cuja representação é o mundo (e isso também seria uma sentença verdadeira). Mas tal conhecimento é intuitivo, é conhecimento in concreto. Reproduzi-lo in abstracto, ou seja, elevar as intuições sucessivas que se modificam, bem como tudo o que o vasto conceito de SENTIMENTO abrange e meramente indica como saber negativo, não abstrato, obscuro, a um saber permanente - eis a tarefa da filosofia. Esta, por conseguinte, tem de ser uma expressão in abstracto da essência do mundo, tanto em seu todo quanto em suas partes. (Arthur Schopenhauer em “O Mundo Como Vontade e Como Representação”; p.137).

A razão, no entanto, ainda está ligada à Vontade, é ainda mais uma manifestação da Vontade, mesmo que possa servir como um meio de “auto-reflexão” dessa mesma Vontade manifesta no fenômeno humano. Lembrando disso podemos então identificar não apenas os limites da racionalidade (que poderia ser muito melhor explicado pela Teoria do Conhecimento como faz, também, Schopenhauer dialogando com Kant), mas, como a Vontade impulsiona a racionalidade e ainda: como a razão é usada para realizar projetos que atendem aos desejos individuais do sujeito ou de um grupo, de acordo com intenções egoístas.

O egoísmo é uma tendência de comportamento que se destaca na natureza, caracterizada pela busca de auto-subsistência e prazer individual, o sujeito agirá em busca da realização dos “desejos” e “impulsos” egoístas mesmo que tenha que passar sobre vontades alheias (ou a Vontade manifesta em outros fenômenos). Além do egoísmo há ainda duas tendências de comportamento que moldam os carácteres humanos: a maldade (que consiste em sentir prazer no sofrimento alheio) e a compaixão (que é definida como a capacidade de “se colocar no lugar do outro”, percebendo, intuitivamente, que no outro (qualquer outro ente vivo, não apenas humano) age a mesma essência una do mundo, na superação, momentânea, porém, marcante, do princípio de individuação). Infelizmente, diz Schopenhauer, ao observarmos o mundo notamos uma predominância do egoísmo na disputa pela vida entre espécies na natureza e no interior da espécie humana (onde o individualismo é mais intenso, dado o desenvolvimento da capacidade racional e, por consequência, uma acentuação do princípio de individuação).

A razão pode servir à Vontade manifesta como egoísmo no fenômeno humano, engendrar planos de dominação e imposição de interesses (por parte de um indivíduo ou grupo que está ou deseja poder, controle do Estado ou do mercado, por exemplo) e ainda arquitetar mundos imaginários mirabolantes e mitológicos que podem ser usados para manipulação de comportamento das massas (o mesmo pode acontecer no campo filosófico e científico com algumas supostas teorias e no campo político com ideologias políticas), algo que foi muito bem trabalhado por Friedrich Nietzsche interpretando Schopenhauer.


Uma aproximação entre Schopenhauer e Horkheimer.

Se tentarmos traçar uma linha de aproximação entre o pensamento de Arthur Schopenhauer e de Max Horkheimer podemos identificar no conceito de “razão subjetiva” de Horkheimer algo sobre o que podemos nos debruçar, levando em consideração que o filósofo da Teoria Crítica, que viveu por um tempo em Frankfurt, foi reconhecidamente um leitor e admirador da filosofia de Schopenhauer (o qual, também, viveu por anos em Frankfurt até a fase final de sua vida). É importante lembrar que outros pensadores estudados pela Escola de Frankfurt como Nietzsche e Freud se inspiraram muito em Schopenhauer, sendo assim, aproximar Schopenhauer da Teoria Crítica de Horkheimer é algo que faz muito sentido.

Horkheimer chamava de “razão subjetiva” o uso da racionalidade seguindo os intuitos particulares do sujeito, no que estaria pressuposto a garantia de sobrevivência e obtenção de sucesso em suas iniciativas práticas, sem levar em consideração perspectivas mais abrangentes oriundas de uma filosofia que tente explicar a realidade em sua inteireza oferecendo projetos políticos e éticos para impor finalidades, objetivos à vida humana, nada disso é preocupação da “razão subjetiva”, pois, essa se concentra na eficiência prática, no planejamento para o sucesso na ação. A razão subjetiva, com o desenvolvimento das ciências empíricas e criação de novas tecnologias, se instrumentalizou, potencializando-se.
O desenvolvimento das ciências naturais e exatas, sob a égide da linguagem matemática e métodos quantitativos, o que a partir do século XIX deu um grande salto e se consolidou no século XX, gerou um grande entusiasmo no Ocidente sobre a eficácia e eficiência desses novos conhecimentos e técnicas, tal logo se espalhou pelo mundo com o processo de globalização do mercado capitalista, principalmente após a Segunda Guerra Mundial.
As chamadas “ciências empíricas” mostraram força prática, demonstraram que eram úteis para fortalecer o capitalismo, assim como produziram tecnologias usadas para extermínio em massa e controle social (aí já com o auxílio, também, das Ciências Humanas) pelos Estados totalitários de cunho fascista e nazifascista e, até o fim da URSS, também, potencializaram mecanismos de controle social no suposto socialismo do outro lado da “cortina de ferro”.
Novas tecnologias, seguindo desígnios de uma racionalidade instrumental, mostraram-se muito úteis para equipar as “mortais máquinas de guerra” dos Estados ao mesmo tempo em que promoveram uma diminuição da mortalidade por doenças no campo da medicina e indústria farmacêutica, impulsionaram a produção industrial e até mesmo levaram a espécie humana à “conquista do espaço” (pelo menos até a Lua e lançamento de sondas espaciais).

O poder demonstrado pelo conhecimento científico destronou progressivamente a tradicional filosofia assentada sobre a metafísica e promoveu uma elevação da “razão subjetiva” e “instrumental”.

Horkheimer denunciava a invasão no campo filosófico da “razão subjetiva”, “formalizada” identificando em correntes como o “pragmatismo” esse esvaziamento da Filosofia para se enquadrar aos procedimentos das ciências empíricas e a uma cultura moldada por tal, na atitude, por exemplo, de tomar como verdade aquilo que representasse a realização prática de uma proposta, de acordo com uma finalidade imediatista “teorias, conceitos, vistos como planos de ação e a verdade como sucesso da ideia” (Max Horkheimer; “Eclipse da Razão”; p.46).

A decadência das grandiosas narrativas filosóficas metafísicas ou mesmo materialistas (que carregavam uma base metafísica mesmo sem reconhecerem isso) as quais ousavam oferecer explicações para a totalidade e planos para a humanidade, que pretendiam explicar ou “decifrar” a história da humanidade de acordo com discursos teleológicos, somada a queda da religião (o que Nietzsche chamou de “morte de Deus”) gerou um clima cultural de crise de valores onde o relativismo passou a triunfar, em um momento classificado por alguns (Perry Anderson, Lyotard, Zigmunt Bauman, Castells, Giddens, por exemplo) como “pós modernidade”(nota 1, ao fim do texto): uma “situação” de predominância de visões relativistas em especial no campo das Ciências Humanas, expressa, também, nas artes; o que aparentemente começou realmente a tomar “forma” no período entre guerras e que, após a Segunda Grande Guerra, sofreu uma aceleração e um grande impulso depois da queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da URSS em 1991. Tais acontecimentos demarcam para muitos o naufrágio do “socialismo real” e com isso a morte das “utopias”, embora, isso não seja reconhecido pelos marxistas mais radicais e temos ainda algumas sociedades que se autodenominam socialistas, sendo a China uma grande potência econômica com bandeira vermelha (obviamente há muitas controvérsias sobre o que seria esse “suposto socialismo real”). Há, também, ainda religiões fortes no mundo, o islamismo se propaga por muitos países levando um discurso autoritário e um projeto “do que deve ser o homem, como deve agir” e em países da América Latina (como Brasil e Bolívia) igrejas evangélicas proliferam (com um cristianismo adaptado ao capitalismo)...

Olhando para o “cenário” descrito até aqui, por trás de tudo isso Schopenhauer provavelmente diria que a irracional Vontade está agindo e que no fundo toda essa insana tragicomédia nada mais é que o “movimento” ou manifestação da Vontade de Vida na natureza, sendo expressa pela espécie humana. Nietzsche completaria adjetivando essa Vontade como “Vontade de potência” ou de “dominação”, onde uns tentam impor aos demais suas verdades subjetivas, que nada mais são que máscaras conceituais (ou engôdos ideológicos, diria Marx) de seus desejos pessoais muitas vezes inconscientes. No entanto, parece que, realmente, a força das grandes narrativas (sejam de cunho metafísico filosófico, ideológico político ou religioso mitológico) perderam muita força, talvez, por não suportarem o embate com tantas outras no conflito cultural que o mundo globalizado engendrou e, ao mesmo tempo, a “razão” (desquitada de finalidades pretensamente mais nobres e tomada como mera ferramenta sem conteúdo, mas, útil como “meio”) passou a ser mais intensamente usada para produzir formas de controle social disfarçadas de “necessária organização burocrática” e “legalidade”, auxiliando na consolidação da hegemonia do mercado capitalista, padronizando as engrenagens do sistema sob orientação de uma classe (conjunto de famílias abastadas que regem grandes empresas e bancos e que se escondem por trás dos fantoches políticos e da áurea de neutralidade das normas legais dos Estados) que controla os meios de produção e “o capital” e determina as regras do jogo.

As teorias metafísicas, ideologias políticas e os discursos religiosos, que ofereciam verdades absolutas e dogmas “incontestáveis”, não conseguem mais se sustentar diante dos choques culturais e da força das ciências empíricas, podem obviamente ainda convencer muita gente, mas, não imperam em toda uma sociedade como referências sagradas e inquestionáveis (com exceção, obviamente, das sociedades onde o fundamentalismo religioso ainda sobrevive, mas, fazendo uso dos recursos e mecanismos elaborados e produzidos pelas ciências ou ainda nas sociedades ditas “primitivas” em processo de extinção). A ciência, também, é atacada, quase sempre por quem ainda tenta preservar antigas perspectivas, mas, ela se impõe como aparato organizativo e assim molda sociedades, o que ocorre de acordo com interesses de quem usa essa ferramenta (cada vez mais eficiente a cada nova tecnologia desenvolvida). A ciência pode até ser desprezada por muitos (que seguem perspectivas ideológicas específicas ou simplesmente ignoram o conhecimento científico por falta de instrução ou real “falta de acesso”), porém, as técnicas e conhecimentos científicos estão em pleno vapor conduzindo multidões. Hoje disputas ideológicas e religiosas se dão por meio de redes sociais em uma rede mundial de computadores, muito útil (ou muita usada) para manipulação de comportamentos e escolhas políticas.

A grande “metanarrativa” que se impõe hoje no mundo do capitalismo internacionalizado é o discurso de uma suposta “Ciência Econômica” que foi dominada pela ideologia Liberal (mais especificamente aos moldes do “neoliberalismo”) usada hoje para “legitimar” o modo de produção capitalista em quase todos os cantos do planeta, propagada pela mídia privada de massa e tomada como referência máxima diante da qual todas as alternativas teóricas são classificadas como “ingênuas” ou “superadas”.
O Liberalismo Econômico (que, aos moldes do “neoliberalismo”, carrega implicitamente o “darwinismo social”), como voz de “aparência científica” forma, em conjunto com a maneira de funcionamento da estrutura do capitalismo (destacando-se na “superestrutura” desse modo de produção), um grande sistema de ideias e produção de mercadorias que se estende pelo planeta, ultrapassando fronteiras e moldando comportamentos de bilhões de entes humanos, servindo aos interesses egoístas de uma minoria de indivíduos e orientando a ação dos Estados capitalistas submetidos a modelos de “democracia liberal representativa” em um esquema onde, como disse Noam Chomsky “(…) os custos e riscos são socializados ao máximo possível, enquanto o lucro é privatizado.”. Ao mesmo tempo temos ainda na China, país mais populoso do mundo e hoje “economia mais forte do globo”, a imposição de uma ideologia que se apresenta como coletivista, mas, que na prática é mais uma forma diferenciada de controle social combinada a técnicas científicas de monitoramento, padronização de comportamentos e intensificação da exploração da força de trabalho.

Diante do que foi descrito, como fica uma tentativa metafísica de interpretação do mundo tal como é a Filosofia de Schopenhauer apresentada em “O mundo como Vontade e Representação”? Podemos dizer que essa Filosofia ainda é muito relevante como base teórica para interpretação da realidade, dado que não oferece projeto algum ou imposição de fins, mas, é uma tentativa de compreender as forças que impulsionam o agir humano e que parecem estar presentes em toda a natureza.
Schopenhauer oferece uma explicação carregada de elementos trágicos, pessimista, sobre o mundo, mas, esse olhar pode ser útil para nos manter atentos diante do que acontece nas sociedades humanas, a nosso redor, nos deixando sempre alertas e precavidos contra armadilhas ideológicas e aparências de verdade, afirmadas (de forma muitas vezes disfarçadas) por quem deseja manter poder e controle na espécie; lembrando que a ação voraz da espécie afeta o conjunto da natureza e que reconhecer a unidade da Vontade como essência comum, bem como o sofrimento inerente à vida pressionada pela Vontade, uma existência recheada de insatisfações (algo muito intenso em nossa espécie, mas, presente, também, nas demais) é já um primeiro passo para a busca de minimização desse sofrimento ou, pelo menos, algo que pode nos ajudar a suportá-lo mais sobriamente.

A teoria pessimista de Schopenhauer é um consolo. Em contraste com a mentalidade atual, sua metafísica oferece a mais profunda fundamentação da moral, sem entrar em contradição com o conhecimento científico e, sobretudo, sem recorrer à representação de espíritos sobrenaturais, eternos, bons ou maus. Com a ideia da morte vincula-se não apenas a certeza no desaparecimento do eu, determinada por ela, mas também a preocupação, em um intervalo que não pode ser previsto – o tempo é subjetivo –, com o instinto imperecível de voltar à vida enquanto ser vivo, planta, animal microscopicamente pequeno ou grande, seja na Terra ou em outro astro qualquer. Tal noção aponta simplesmente para a identidade do vivo e consegue fundar a solidariedade com todas as criaturas bem antes da morte. Cada um se identifica até com o mais precário ser. A teoria da identidade da vontade está hoje mais próxima daquele que medita seriamente do que os argumentos ligados a dogmas tradicionais da filosofia moderna. Esta queria conciliar religião e ciência, oferecer provas rígidas para a existência do criador extraterreno, sem colocar em questão os mandamentos religiosos, socialmente condicionados, das convicções religiosas. (“O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião”; M. Horkheimer; p.127; tradução de Flamarion Caldeira Ramos).


Obviamente Schopenhauer destoa da dialética que foi tomada como uma base pela Escola de Frankfurt, embora o conflito no mundo seja identificado tanto por Schopenhauer quanto pela dialética derivada de Marx (identificado de forma diversa, mas, apontado por ambas as linhas de pensamento) o qual partiu de Hegel.
Não há nenhum ideal teleológico, um fim almejado, um sentido determinado (e idealizado filosoficamente para a vida humana) em Schopenhauer, ao contrário do projeto do “Materialismo Histórico Dialético” de Marx e Engels e seu “Socialismo Científico” que almejam a revolução social para se chegar a um mundo livre e igualitário em um futuro comunismo (a “utopia” socialista). Mas, com relação à Teoria Crítica (inspirada no Materialismo Marxista), a necessidade de encarar o presente e a realidade dada, “sem maquiagens”, é algo que essa Filosofia guarda em comum com o Filósofo da Vontade.
Horkheimer vai destacar o reconhecimento do sofrimento humano no mundo diante do qual toda doutrina ideológica é menor, ou seja, um ideal ideológico não vale mais que o sofrimento das pessoas, sacrificar vidas para atender volições ideológicas, que podem estar escondendo meros interesses e desejos individuais (subjetivos), não é algo razoável, de forma que cabe à Teoria Crítica manter uma postura autocrítica constante diante da ambição de construir um projeto de emancipação humana calcado no que as condições vigentes apresentam.

Atual é Schopenhauer, assinala Horkheimer, porque hoje, mais ainda do que em seu tempo, o progresso da civilização demonstrou ser aquilo que, em sua obra, já se desmascarava em sentenças tão inconformadas quanto amargas. Saltava-lhe aos olhos que a marcha triunfal do progresso não passava da manifestação da Vontade inconsciente de si mesma em sua crueza irracional e autodevoradora. Repetirá, incansável, que o processo histórico é uma eterna repetição do mesmo com outros nomes e sob outras roupagens. E contudo, nessa clarividência esteve sozinho. Contra toda sua época, que em uníssono idolatrou a história como contínua e necessária progressão rumo ao melhor, Schopenhauer escreveu como um profeta a maldizer seu tempo, enquanto seus contemporâneos deixavam seu vaticínio cair no vazio. Seu grande valor: o de não ter sucumbido a nenhuma tentativa de racionalizar o horror e a injustiça reinantes na história. Foi lúcido e honesto o bastante para discernir, por trás da apologia do progresso a qualquer preço, mais um ardil da razão a disfarçar o interesse material, o afã da existência, bem-estar e poder que governam a história. Compreendeu melhor do que ninguém em seu tempo que todo progresso pagava-se com novas penas, para cuja realização impunha-se a representação de algo melhor. (Chiarello, Mauricio. G. “Das Lágrimas das coisas. Estudo sobre o conceito de natureza em Max Horkheimer”; p. 195-196; retirado de: “Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário”; Flamarion Caldeira Ramos).



A Filosofia de Schopenhauer se opõe a toda tentativa de interpretar a realidade com base em perspectivas teleológicas que pressuponham um suposto “progresso” não apenas na história das sociedades humanas, mas, também, no própria Natureza-Universo (como é o caso do Hegelianismo que recorre a dialética para tal).
As teorias filosóficas que afirmam um progresso geralmente tendem a justificar as atrocidades que acontecem na história e no mundo como partes de um processo que culminará com algo melhor no futuro, isso se assemelha às religiões que profetizam catástrofes e, ao mesmo tempo, uma redenção futura dos “escolhidos” (em especial é o caso do Cristianismo).(nota 2).
Schopenhauer expressava em seus textos uma narrativa trágica sobre o mundo, pessimista, mas, ao mesmo tempo Horkheimer reconhecia no filósofo da Vontade a ostentação de uma visão moral que poderia ser um contraponto muito positivo ao predomínio da fria “racionalidade instrumental” em um mundo dominado por técnicas de controle e produção em massa, esvaziado de sentido e subjugado a interesses do mercado ou de grupos que controlam Estados. A noção schopenhauriana de “unidade da Vontade” e a fundamentação metafísica que Schopenhauer apresenta para o agir ético (destacando a compaixão), são como gritos de protesto contra as mazelas do mundo (as mazelas naturais e as geradas por “partes” da própria humanidade na ânsia de dominação e egoísmo).

(...)o pensamento de Schopenhauer, apesar de marcado pelo pessimismo, constitui um consolo positivo, pois ainda representa a tentativa de buscar um significado moral do mundo para além do positivismo e em contraste com a completa socialização levada a cabo pela sociedade totalmente administrada. Sua teoria, apesar de antecipar e justificar o pessimismo dos dias de hoje, “não é, de modo algum, tão pessimista quanto a absolutização da ciência”. Ela pode “fundar uma solidariedade que, de maneira não dogmática, contém em si momentos teológicos”, pois o “pessimismo une experiências histórico-filosóficas com a herança da grande teologia. Sua difusão poderia ocasionar muito mais o bem do que a formação cada vez mais, e em toda parte, exclusivamente profissional”.(“Horkheimer leitor de Schopenhauer:uma tradução e um breve comentário” ; p.112; Flamarion Caldeira Ramos).



Horkheimer em uma determinada fase de sua produção filosófica se aproximou muito do pessimismo schopenhauriano e até mesmo demonstrou uma visão mais nebulosa com relação ao que vislumbrava estar acontecendo com a humanidade perdida em meio ao turbilhão de tecnologias novas e sem um projeto consistente e eficaz de autonomia e elevação da espécie a estilos de vida mais dignos e “justos” que usufruíssem realmente das conquistas das ciências para algo mais positivo (em uma perspectiva coletiva e em harmonia com a natureza). Tudo isso parecia estar fadado ao fracasso, os oníricos projetos do Iluminismo haviam sucumbido na violência dos regimes totalitários e na voracidade do mercado capitalista que transformava cada vez mais humanos em objetos, “máquinas orgânicas” treinadas para o trabalho e consumo, peças de uma grande engrenagem, como Chaplin ilustrou muito bem em “Tempos Modernos”.

O curso presente da sociedade é uma justificação do pessimismo que Schopenhauer pressentia, mas ainda não era capaz de analisar. A alma humana se desenvolve em direção a uma função automatizada, próxima à do computador. Nenhuma emoção conta ainda se não for enquadrada na realidade apreendida pela ciência. Quanto mais o pensamento humano tenha de reduzir-se decididamente à atividade puramente instrumental, tanto mais a comprovação de cultura corresponderá com precisão à convicção de Schopenhauer de que “a nossa condição é ao mesmo tempo extremamente miserável e pecaminosa” – mesmo quando, poder-se-ia acrescentar, a igualdade da humanidade funcionando como espécie, depois das épocas bárbaras do passado, devia expandir-se. (“O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião”; M. Horkheimer; p. 127. Retirado do artigo “Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário”; Flamarion Caldeira Ramos).


Não podemos afirmar com certeza o que Schopenhauer e Horkheimer diriam sobre o mundo contemporâneo (2019) se estivessem vivos hoje, mas, podemos imaginar que não seria nada muito agradável ou otimista, levando em consideração o avanço das tecnologias geradas pelo acúmulo de conhecimento científico, comparadas ao estado lastimável em que bilhões de pessoas vivem hoje no mundo (dominado pelo modo capitalista de produção). A lista é grande: muitos regimes autoritários e pseudo-democracias problemáticas onde imperam a desigualdade; exploração de trabalho de multidões; predomínio da pobreza; armas de destruição em massa cada vez mais eficientes e potentes; guerras e massacres; ignorância assombrosa; desperdício de vidas; depressão e desespero; refugiados morrendo afogados no mar; dementes no poder; movimentos afirmando que a “Terra é plana”, etc. E tudo isso sob intenso planejamento e violento controle, diante dos “olhos” de câmeras de monitoramento, em uma época em que quase todos carregam seus próprios vigias no bolso, minis “big brothers” equipados com “GPS” (quando não estão imersos no delírio do mundo “virtual” da Internet). A Natureza agoniza atacada por uma parte dela mesma: pela espécie que “sabe que sabe”.




Bibliografia:

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002.

HORKHEIMER, Max. O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião; r, 127. Tradução de Flamarion Caldeira Ramos. Disponível em:
http://ficem.fflch.usp.br/sites/ficem.fflch.usp.br/files/OpensamentodeSchopenhauer.pdf ou em http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/64799/67416 .

NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. Tradução de Paulo César de Souza.São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

RAMOS, Flamarion Caldeira. Horkheimer leitor de Schopenhauer: uma tradução e um breve comentário.
(Artigo). Disponível em http://www.revistas.usp.br/filosofiaalema/article/view/64799/67416

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo Como Vontade e Como Representação. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Editora UNESP, 2005.


Notas :

1-Aqui podemos pensar em como a chamada “pós-modernidade” revela consequências da exacerbação do “uso da racionalidade subjetiva” em detrimento da “racionalidade objetiva” ou de como parece ser uma “reação” (quando abordada destacando-se os discursos de apologia -ou identificados com o “pós-modernismo”- no campo da Filosofia ou mesmo quando se observa a chamada arte “pós-moderna”) aos resultados negativos gerados pela “racionalidade instrumental”, mas, tal tema deixaremos para uma outra oportunidade, poderia ser desenvolvido em outro artigo, visto não ser o objetivo específico do presente trabalho. 

2-“Schopenhauer fundamentou filosoficamente o amor ao próximo, à criatura em geral, sem sequer tocar nas hoje questionáveis afirmações e prescrições das religiões. Seu pensamento não é, de modo algum, tão pessimista quanto a absolutização da ciência”. (“O pensamento de Schopenhauer em relação à ciência e à religião”; Max Horkheimer; p.127; tradução de Flamarion Caldeira Ramos. Disponível em:

domingo, 17 de novembro de 2019

O animal que "sabe que sabe".



O animal que "sabe que sabe".

por Paulo Vinícius
(Professor de Filosofia e Sociologia)


Recorrer ao "argumento" da "cadeia alimentar" ou "suposta superioridade da espécie" para justificar comportamentos humanos com relação a outras espécies, não é bom argumento e pode gerar posicionamentos incoerentes sobre o que se almeja para a própria espécie.

A espécie humana tem como uma de suas características a capacidade racional para discernir entre opções complexas apresentadas com base em conhecimento prévio e conceitos abstratos, de forma consciente e autoconsciente (percebendo o próprio processo e suas etapas). Comparar a espécie humana com o que fazem outras espécies (que agem frequentemente por mero instinto) na maioria das vezes é exemplo de erro grosseiro, falácia.

Quando se força uma analogia entre a espécie humana e as demais, no que diz respeito, por exemplo, a questão da alimentação, para se tentar justificar a alimentação baseada em carne (sem critérios), esquecendo que outros animais agem, na maioria das vezes, por impulso instintivo e não possuem discernimento racional sobre o que fazem, enquanto a espécie humana organiza uma indústria da carne e derivados de animais em escala global (onde milhões de animais morrem diariamente de forma violenta para satisfazer prazeres humanos, a maioria desnecessários) o erro da comparação é ainda mais tosco.

Se um sujeito critica a exacerbação do individualismo, exploração, competição e uso do "darwinismo social" (o discurso de que "mais fortes ou mais bem adaptados" devem realmente dominar os demais) por liberais e neoliberais que recorrem a isso para justificar a "exploração de humanos sobre humanos" nas sociedades capitalistas (assim como nazifascistas fazem, de forma ainda mais escancarada, nas sociedades onde essa ideologia racista e autoritária domina), se indigna com o uso de ideologias para "legitimar" a pobreza e desigualdade ou mesmo quando o sujeito repudia que alguns (ou uma classe específica) imponham violentamente seus interesses aos demais (vistos como "fracassados ou inferiores"), então, tal sujeito não deveria, fazer o uso de argumento semelhante para justificar a exploração humana de outras espécies animais apenas por ser mais conveniente ao seu "gosto pessoal", afirmando que "por sermos superiores as demais espécies e estarmos no topo da cadeia alimentar devemos, então, fazer o que é da nossa vontade e usar outras espécies como desejarmos", pois, "seria de acordo com a natureza"; tal posição é uma incoerência descarada, já que assume aspectos de ideologias as quais para a espécie humana condena , mas, que aplicadas a outras espécies afirma como "justificáveis".

Não há argumento razoável para afirmar a superioridade da "espécie humana" (o que se toma como referência?) como um "critério ético", e os supostos "argumentos" que são geralmente usados são muito semelhantes aos discursos ideológicos usados para justificar hierarquias de poder no interior da própria espécie. Mas se o critério for a superioridade intelectual e capacidade racional ( o que permite a espécie pensar sobre si e sobre o mundo onde está inserida , a natureza da qual é uma manifestação consciente), então, o desfecho do raciocínio é outro e encontramos algo como uma "responsabilidade da espécie diante da natureza" ao contrário de uma "afirmação egoísta" que seria uma auto-condenação assumida e que racionalmente facilmente pode ser criticada como estupidez, capaz de gerar danos para a própria espécie quando os efeitos da ação abalam ecossistemas em um planeta onde há , como podemos perceber, uma interação sistemática entre quase todas as formas de vida (bem como, também, com a matéria inorgânica afetada pela ação humana).

Obviamente se buscarmos construir uma Ética que oriente a relação da espécie humana com as demais, os critérios do sofrimento e dor são básicos, assim como o critério da liberdade alheia e da manutenção de equilíbrio ambiental (no entanto "dor e sofrimento" aparecem como primordiais). Para enlaçar essas preocupações o ideal de planejamento social, visando a melhoria da qualidade de vida da própria espécie humana no planeta é algo que se mantém implícito e a forma como tratarmos as demais espécies e a natureza como um todo será sempre um espelho da forma como tratamos a nossos próprios semelhantes no interior da espécie humana.

A denúncia (enquanto a ação efetiva não é possível) é importante para tentar despertar o esclarecimento e dar voz aos que não podem protestar ou defenderem-se a si mesmos. Apontar a violência contra as demais espécies e a destruição do ambiente guarda semelhança com as denúncias sociais que revelam a exploração e a miséria nas sociedades humanas.







Disponível, também, em:
http://opensadorselvagem.org/ciencia-e-humanidades/panta-rhei-poesiasofia/bioetica/