Literatura: uma arte para
pensar aspectos da realidade.
(por Paulo Vinícius N. Coelho; Professor de Filosofia e Sociologia).
Uma obra literária, como um
romance, revela o mundo interno de representações de seu (sua)
autor (autora), um universo interior repleto de simbologias e
perspectivas sobre a realidade que o circunda, mas, também seus
sentimentos, emoções, valores e preferências (em vários âmbitos).
No entanto, isso não necessariamente aparecerá de forma explícita,
pelo contrário, muitas vezes pelos críticos é considerado um
critério para avaliação da qualidade de uma obra literária a
capacidade do escritor disfarçar suas próprias preferências e
visão de mundo, na riqueza de “nuances” dos comportamentos e
pensamentos das personagens e desenvolvimento de características
psicológicas das mesmas.
Obviamente é inevitável
reconhecer que mesmo no disfarce das máscaras (personagens) ali
ainda está o autor (ou autora), afirmando um valor ou perspectiva
importante para ele (ela) sobre a realidade (ou sobre si mesmo) ou
expressando um diálogo entre perspectivas que pretende destrinchar,
destruindo algumas, até destacar a que for sua preferida. Isso é
inevitável, pois, trata-se da criação da mente de um sujeito que
gera um universo através da escrita, com detalhes de ambiente e
características de personagens, como um “deus parindo um mundo”;
tal mundo é parte dele, ali ele está presente em todos os aspectos
desse mundo, não há como escapar disso, mesmo na hipótese de uma
escrita automática, aliás, neste caso, geralmente, a pretensão é
revelar o subconsciente do próprio autor (a).
Como estamos
integrados a um mundo (falando aqui do Universo-Natureza que tomamos
como “realidade”, a “phýsis” dos “Filósofos da Natureza”;
uma realidade dada, mas, sobre a qual pouco temos controle e
conhecimento aprofundado) é comum levarmos em consideração, ao
lermos uma obra literária, o contexto social, político, histórico
e cultural onde o autor da obra estava mergulhado quando a produziu,
e mesmo que, de nossa parte, como leitores, não demonstrássemos
preocupação com isso (embora, ela esteja sempre implícita até
quando não sublinhada, dado que tais informações são necessárias
para que nossa mente decodifique o que está lendo), não há dúvidas
de que o escritor(a) sofreu as influências do meio onde estava
inserido e processou tais influências de acordo com seu arcabouço
conceitual, bagagem de informação e subjetividade (para resumir).
É verdade que nossa própria
mente é um mistério para nós mesmos, não é atoa que Heráclito
se preocupava com o “Conhece-te a ti mesmo!” (depois repetido por
Sócrates nas linhas dos diálogos de Platão), portanto o ato de
escrever pode ser, também, um processo de explicitação ou
expressão gradual de algo sobre o próprio íntimo do sujeito, mas
sobre o qual ele não tem total controle, isso acontece com quase
todas as obras de arte (independente da linguagem estética em
questão), isso quando tomamos como objeto da atenção filosófica o
ato criativo.
A literatura parece ser uma arte
com alto grau de complexidade no que diz respeito ao acúmulo de
material volitivo, e não consciente, que podemos notar em uma
observação sobre as obras, e isso serve mesmo para o próprio
criador que olhará para sua obra depois de concluída, encontrando
coisas que não imaginava que poderiam ali estarem expressas quando
estava no “durante” de seu processo criativo, mesmo que tenha
muito planejado. Mas, dentro da literatura, a poesia parece ser mais
potente neste sentido, podendo enriquecer a prosa, dado que a poesia
pode estar presente internamente na prosa. Aqui devemos definir o que
é poesia afinal: de forma muito sintética, entendo por poesia não
exatamente uma linguagem poética engessada na forma do poema, mas, a
capacidade de expressar, metaforicamente, com ritmo, sentimentos,
ideias, vontades individuais, crenças, de forma que tais ganhem
“corpos” estéticos apropriados para a apreciação sensível de
quem der atenção a tal expressão, atenção de cunho estético que
envolve uma reação emocional, e não apenas racional, no sujeito da
atenção. Temos então que identificar o que exatamente seria essa
“atenção estética”, o que exatamente acontece no sujeito que é
expectador de uma obra de arte, mesmo que seja o próprio criador
dela? O que acontece em sua mente e em seu corpo (ou como alguns
preferem “em seu corpo psicofísico”) quando se depara com uma
obra de arte estando aberto a receber dela uma “mensagem”? É
preciso deixar claro que é necessário que o sujeito esteja aberto a
receber da obra (ou do fenômeno “obra de arte” “x”) algo,
especificamente “a mensagem estética”, caso contrário a
experiência estética não se desenvolve adequadamente ou poderíamos
dizer que “nem mesmo acontece”. Além disso é preciso que o
espectador domine alguns códigos, que conheça alguns símbolos
presentes na obra ou que consiga nela os identificar, caso contrário
é possível que nem mesmo reconheça tal obra como “arte”; isso
é mais comum no campo das artes plásticas e visuais, mas, também
acontece na música.
A literatura se apresenta
geralmente como “literatura”, mesmo nas formas de literatura mais
“alternativas” ou “experimentais” há uma forma que envolve a
apresentação da obra, uma forma que a determina como “literatura”
(romance, prosa, poema…) e não como qualquer outra coisa, e isso
pesa muito sobre tal tipo de arte. A música se aproxima do que disse
com relação a literatura, mas, temos na música experimentações,
em especial a partir da segunda metade do século XX, que a maioria
das pessoas certamente não teriam muita facilidade em reconhecer
como música, e nas “artes visuais e plásticas” as “inovações
e experimentações” aparecem com uma frequência maior na
contemporaneidade, em especial nas instalações e arte dita
“abstrata” (uma palavra não muito adequada, mas, que é usada
tradicionalmente para classificar trabalhos de artistas como
Kandinsky ou Pollock).
A música mais comum (no sentido
de mais “popular” ou mais propagada) tem como base escalas
tomadas como padrão e que estão fundadas sobre notas identificadas. A literatura, por sua vez, está presa à gramática e ortografia de um
idioma e dos ícones usados para simbolizar conceitos através da
linguagem predominante dentro de uma sociedade e cultura específica.
A gramática de uma língua não
pode ser ensinada sem um contato com a cultura do povo que a usa,
pois, os ícones usados não seriam jamais compreendidos ou seriam
assimilados de uma forma tal que quem se apropriasse deles, sem
conhecer os significados usados nas sociedades que originalmente os
usavam, correria o risco de criar uma nova língua e é exatamente
isso que acontece com o alfabeto romano usado pela maioria das
sociedades ocidentais, as letras (sinais gráficos) que formam
palavras-ícones podem formar inúmeras palavras com sentidos
diferentes em cada idioma onde são usadas e podem mudar até mesmo
de som, embora, guardando uma linha histórica e fonética que pode
ainda ser identificada. As palavras, por sua vez, carregam uma linha
histórica filológica também passível de ser mapeada, dado que
falamos de idiomas que derivam do Latim o qual ainda guardamos
registros de estudos históricos sobre. Mas podemos lembrar aqui que
o grego e até mesmo o árabe e outras línguas que usavam alfabetos
diferentes, também influenciaram a formação de palavras nos
idiomas que usam o alfabeto romano, mas o que permaneceu foi o som
das palavras traduzidas para os sinais gráficos latinos e muitas
vezes um pouco do sentido original das mesmas, por exemplo: a palavra
“logos” que em grego era escrita com outro alfabeto e que dá
origem no português a palavra “lógica” cujo um dos sentidos
claramente é “razão”, mas que pode também ser compreendida
como “uma disciplina filosófica dedicada a análise de
argumentação e forma de argumentos” (disciplina a qual usará
também, algumas vezes, sinais gráficos e ícones próprios, tal
como a matemática tem seus sinais de adição, subtração, divisão,
multiplicação, porcentagem, etc, e ícones básicos em forma do que
chamamos “números” sendo os básicos “0123456789” os quais
formam todos os demais, em infinitas combinações e possibilidades
de adições).
Voltando à Literatura, lembramos
que, como obra de arte, um romance é “aberto” e deve ser assim,
caso contrário perde sua força como obra de arte, embora alguém
possa talvez dizer que se cansou de um livro e que nada ele tem mais
para comunicar-lhe, isso geralmente é exagero ou a falta de
interesse do sujeito em tentar extrair mais daquela obra, o que
poderia fazer se direcionasse a ela ainda mais atenção ou a
colocasse sob questionamento, crítica). Temos aqui a sugestão que o
“colocar sob crítica ou questionamento” pode manter uma obra de
arte viva (no sentido de “aberta”) para o espectador, o que nos
leva a reconhecer que a Filosofia é muito útil para a apreciação
estética se for vista como “atividade de pensamento crítico e
reflexão constante, no destrinchar da realidade” (realidade como
tudo o que pode ser percebido pelo sujeito, no mundo fenomênico a
seu redor e nele mesmo).
Para ilustrar bem o que quero
dizer com “Literatura para pensar a realidade”, destaco a obra “O
Conto da Aia” (“The Handmaid's Tale”)
de
Margaret Atwood.
Nessa
obra a autora
desenvolve o mundo interior da personagem principal Offred, apresenta
as camadas de complexidade da subjetividade da personagem,
expressando aspectos de seus sentimentos, sua percepção sobre si e
sobre a situação em que vivia, memórias, percepção sobre o
próprio corpo, valores, o que sentia e pensava sobre o comportamento
de outras personagens e o tempo… Podemos encarar tal trabalho como
um exercício de compreensão sobre o comportamento humano, a “mente”
tentando compreender a realidade e a si, e comparar ao que um
filósofo ou um psicólogo tentam fazer ao tratarem dos mesmos temas.
Se lembrarmos, por exemplo, a
Crítica da Razão Pura de Kant, não há dúvidas de que, apesar de
recorrer também à tradição da história da Filosofia, Kant
constrói sua teoria olhando para si mesmo, observando a si, tomando
a si mesmo como objeto, caso contrário, de acordo com os
pressupostos (ou talvez as conclusões para ser mais preciso) de sua
própria filosofia, seria inviável falar sobre como o “sujeito do
conhecimento” percebe a realidade, dado que tudo o que pode
perceber do mundo externo e do próprio corpo são meros fenômenos
submetidos à forma da intuição empírica, ao tempo e espaço e as
categorias do entendimento. Kant não criou nenhuma personagem, mas
poderia tê-lo feito para explicar sua perspectiva, seria um
exercício de criatividade filosófica e poética, se assim fizesse,
embora podemos pensar que o “sujeito do conhecimento” seja algo
semelhante a uma personagem, “uma máscara”.
Margaret Atwood não escreveu (na
obra citada aqui) sobre limites do conhecimento, sobre criticismo ou
“razão pura”, não pretendeu escrever um livro de Filosofia com
“O Conto da Aia”, mas ao abordar o tema da opressão e escrever
sobre o que imaginava se passar na mente de uma mulher oprimida sob
uma ditadura religiosa, nos faz pensar sobre a situação e condição
humana e certamente muito do que escreveu o fez baseado em sua
história de vida (não necessariamente do que viveu "na prática"), no que incluo aí toda sua bagagem de leitura e
observações sobre o que acontecia a seu redor e como sua própria
psiquê percebia a realidade, a si mesma, etc.
Uma escritora não pode escapar
de sua própria subjetividade, isso é impossível, mas Margaret
Atwood fez um exercício de imaginação e de “colocar-se” no
lugar do outro, mesmo que esse outro fosse uma personagem a quem dava
“vida” nas linhas de seu livro.
A Literatura é uma forma de
conhecimento da realidade (retomando e frisando que, denominamos aqui
“realidade” a tudo o que podemos ter acesso através de nossos
sentidos e que podemos pensar “sobre” de alguma forma; o que está
dado, porém, nem sempre ainda interpretado ou compreendido; também
o que pode ser imaginado; o que ocorre a nossa volta e dentro de
nossas mentes). A literatura é mais uma tentativa do sujeito
compreender o mundo a sua volta e a si mesmo, usando a imaginação
submetida à forma racional do texto literário ou se expressando
através dessa “fôrma”, com suas regras específicas ou regras
engendradas pelo próprio escritor ou escritora. E como toda arte, a
literatura tem a potência de criar algo novo na realidade, gerar
novas perspectivas, novas formas de interpretação sobre o mundo.
Podemos, a partir da obra de
Atwood (a qual já inspirou filme e série de TV), pensar sobre
coisas que acontecem a nossa volta, desde temas sobre política,
machismo, até arte e religião, moralismo, conservadorismo, amor,
família, além da própria subjetividade humana e interação entre
subjetividades...
Exercitando uma analogia, podemos
pensar: Seria possível, hoje, em um país como o Brasil, por
exemplo, onde igrejas evangélicas neopentecostais disseminam-se pelas periferias das grandes cidades (e fazem acordos com governos),
a efetivação de uma ditadura baseada nas interpretações sobre a
bíblia por parte dos pastores que controlam tais instituições? Não
podemos esquecer que em pleno 2020 pastores com interpretações
sobre o “Velho Testamento” (alguns se aproveitando da própria
tolice e arcaica crueldade que alguns trechos deste livro
infelizmente apresentam) tão toscas quanto as da inquisição
medieval, fazem coro com o atual governo federal que é presidido por
um indivíduo que não tem vergonha em fazer apologia à tortura e
ditadura militar e elogiar tiranos capitalistas. No mínimo podemos
pensar, comparando com a obra de Atwood, sobre a força dessas
igrejas na sociedade brasileira e a capacidade de influência que
possuem sobre milhões de brasileiros, moldando aspectos da cultura e
moralidade, interferindo mesmo na política, por intermédio de
partidos e candidatos que patrocinam. Sendo assim, reconhecemos
facilmente que a literatura nos traz, ao alimentar ou instigar nossa
imaginação, a possibilidade de, no mínimo, ser auxiliar na
construção de interpretações sociológicas, psicológicas e
filosóficas sobre a realidade social, política, cultural e o
comportamento humano.
A literatura também é um
aspecto da realidade e como tal (como já sugerido), em sua potência
criativa, afeta o mundo, afeta comportamentos, gera valores; isso não
pode ser esquecido, o próprio texto bíblico mencionado há pouco,
demonstra muito bem isso.
Em um romance, uma ficção, o
mundo gerado pelo escritor aparece com leis da natureza, tempo,
regras, espécies, de tal forma que, dependendo da precisão da
criação, para muitos pode iludir a ponto de parecer real ou
oferecer uma fuga aparentemente consistente (por convencer) do “mundo
real”, escapar de um mundo que lhes pareça entediante ou pesado.
No mundo da ficção literária
a imaginação pode voar, mas, dependendo da obra a opressão pode
ser sentida a cada linha, como é o exemplo da obra de Atwood. De
qualquer forma a criação literária e a leitura são formas de
experienciar o mundo que mostram a complexidade do fenômeno humano.